sexta-feira, 17 de junho de 2011

A importância da morfologia social


Pensar sobre a maneira como grupos sociais se organizam num dado espaço territorial é o primeiro passo para compreender o que constitui a sua morfologia. Parece uma tarefa simples, porém, esconde uma complexa rede de variáveis que se entrelaçam, obscurecendo o entendimento de quem observa. Por outro lado, o ponto de vista do observador também se mostra determinante para definir a importância e o significado desse aspecto da vida social. Assim, lendo dois autores clássicos da Antropologia, Marcel Mauss e Claude Lévi-Strauss sobre este tema que parece auto-explicativo, deparei-me com a constrangedora indagação: Qual é a importância da morfologia social?  
Os textos de Mauss e Lévi-Strauss se aproximam, na medida em que procuram estabelecer parâmetros de análise da estrutura social por meio da sistematização morfológica dos grupos. Porém, os dois autores se distanciam em suas abordagens e preocupações, decorrentes de seus contextos históricos distintos. Enquanto Mauss possui uma perspectiva empírica da organização social, cuja estrutura pode ser acessada através da observação de suas práticas e instituições, bem como suas funções, Lévi-Strauss concebe a estrutura social como uma instancia que só pode ser entendida à nível cognitivo. Ou seja, Lévi-Strauss se preocupa com a maneira como os sistemas de pensamento constroem a estrutura visível das organizações sociais. Ambas as análises possuem pretensões universalistas, objetivando instrumentalizar estudos sobre a morfologia da vida social. No entanto, para Mauss a organização social influencia os sistemas de classificação, enquanto para Lévi-Strauss os sistemas de pensamento é que determinam a organização social.
Em “Ensaio sobre as variações sazonais das sociedades esquimós”, Mauss escreve sobre a sazonalidade morfológica dos esquimós, dialogando com o determinismo geográfico e a antropogeografia da época, com o intuito de preconizar os usos e costumes culturais como fatores essenciais da organização social, para além dos fatores territoriais. Seu interesse é definir o que seria “morfologia social” para esquadrinhar seus efeitos nas atividades e interações coletivas. Para ele, a morfologia social é o substrato material das sociedades, bem como o conjunto de coisas que servem como base para a vida coletiva. Nesse sentido, o substrato material não se constitui apenas pelo solo, mas pelas práticas culturais e idiossincrasias dos grupos.
Mauss não descarta a importância da base territorial para a organização das sociedades, porém critica analises que atribuem para a preponderância quase exclusiva dos fatores geográficos. Assim, o autor demarca a atuação da sociologia, criticando analises que simplificam a relação entre “natureza” e “sociedade”, como se a última fosse fruto direto da primeira. Para isso, chama a atenção para a necessidade de se considerar a organização social em sua totalidade, como algo que possui certa independência da natureza. Ao estudar as sociedades esquimós, o autor intenta apresentar um modelo exemplar de como as formas materiais dos agrupamentos humanos afetam os diferentes modos de atividade coletiva.
Antes de entender a sazonalidade, Mauss tentou estabelecer critérios de unidade aos grupos esquimós. Nessa tentativa, Mauss se deparou com dificuldades de definição, decorrentes da aparente falta de coesão nas esferas política, lingüística e territorial. Contudo, conclui que a organização esquimó não repousa em aspectos tribais, mas na constância de relações entre grupos aglomerados. A unidade não está no pertencimento de um único grupo a um território demarcado, mas na comunicação constante entre os grupos. Conseqüentemente, a unidade do grupo e, portanto, sua base morfológica principal seria verificada nos assentamentos. Os assentamentos são habitações esquimós que são construídas de duas formas distintas: no verão são construídas tendas dispersas pela costa, são construções simples e pequenas, habitadas pelas unidades familiares; no inverno são construídas casas mais elaboradas, feitas para abrigar uma coletividade, com mais de uma família. Desse modo, os assentamentos propiciam uma unidade morfológica aos esquimós, pois além de possuírem um nome próprio e fronteiras demarcadas, são compartilhados caracteres identitários, há um consenso moral e religioso, através de relações pessoas e da possível comunicação entre os membros.
Em relação aos assentamentos, Mauss explica a existência de um equilíbrio tênue entre a sociedade esquimó e a natureza ao seu redor. Esse equilíbrio implica a limitação dos assentamentos e sua extensão. Há uma imbricação entre sociedade e natureza a tal ponto que a alteração de um provoca a alteração de outro. A dura natureza em meio a qual vivem afeta não o indivíduo, mas a coletividade em sua organização. Porém, assim como a natureza influencia a organização esquimó, esta ultima influencia a forma como a primeira é percebida e utilizada. (ex. mesmo em locais privilegiados, os esquimós não excedem sua população). Desse modo, o assentamento esquimó é de pequenas proporções, pois é a configuração que lhes permite manter esse equilíbrio, com uma determinada forma de ação sob e afetação pela natureza.
Tendo os assentamentos como unidade dos esquimós, a analise de Mauss prioriza a “normalidade” dual de sua morfologia, em detrimento de algumas variações que o autor não considera relevante e que não se enquadram na lógica estrutural esquimó. As variações sazonais implicam não só em mudança no formato ou no tipo de habitação, mas também na própria distribuição dos habitantes. Enquanto no verão o grupo se dissemina amplamente pela costa, no inverno presencia-se o movimento contrário de aglomeração das famílias.
Tentando situar as possíveis causas dessas variações sazonais, Mauss aponta mais uma vez que as causas não podem ser interpretadas como causas físicas, pois antes são causas de origem social. Ele constata certa resistência do grupo à mudanças técnicas que alterem seus modos tradicionais de existência. (as técnicas usadas não são as de melhor adaptação ao meio ambiente). Tal resistência, além de manter a sociedade em um sistema de permanente escassez de recursos, aponta para um fenômeno social de simbiose que obrigaria o grupo a viver à maneira dos animais que caçam. Assim, a causa das variações de dispersão e aglomeração seria uma escolha cultural, cuja função é manter um sincronismo entre sociedade e meio ambiente.
Essa sazonalidade acarreta efeitos sobre a vida religiosa, jurídica e no regime de bens dos esquimós, bem como em todo o seu sistema classificatório. No verão, há predominância de cultos privados e de uma vida quase laicizada. No inverno, a exaltação religiosa é coletiva, com festas longas, ritos e sistemas de reciprocidade. No sistema jurídico também se verifica essa lógica dupla: no verão o parentesco é individual, com o direito patriarcal e o casal conjugal; no inverno o parentesco é coletivo, com direito comunitário, o grupo extenso e o sistema de trocas. No regime de bens as coisas e os usos variam conforme as estações inverno e verão, existindo um duplo direito de propriedade. Proibições, interdições e tabus cercam os objetos e divide-os em “sagrados” e “profanos”. É importante dizer que a divisão inverno e verão não correspondem diretamente às variações climáticas existentes nas regiões esquimós, mas foram criadas pelos nativos para ordenar a variação dualista de atividades da sociedade esquimó. Para Mauss, os dois regimes se afetam mutuamente de forma complementar. Assim, dimensão total da vida social esquimó varia de acordo com a morfologia da sociedade.
Ao contrário de Mauss que enfatiza a importância da organização social para a formação dos sistemas simbólicos dos esquimós, Lévi-Strauss quer compreender como a organização social é permeada a partir de aspectos de nível profundo, inconsciente da vida social. Em “As organizações dualistas existem?”, o autor aborda a temática da morfologia social através de uma nova perspectiva que critica estudos de Marcel Mauss, Raddcliff-Brown e Malinowski acerca de sistemas dualistas, cujas organizações são binárias, simétricas e recíprocas. Para tanto, analisa três tribos indígenas: duas da América (Winnebago e Bororo) e uma da Indonésia, comparando-as entre si. É essencial ter em mente que a perspectiva intelectiva de Lévi-Strauss constitui toda a argumentação do texto, bem como a escolha da temática e dos exemplos. Ao longo do artigo, podemos visualizar um raciocínio sistêmico e matemático, capaz de elaborar teoricamente uma argumentação que abarca aspectos que, segundo o autor, eram considerados variantes não tão importantes para a compreensão do sistema social como um todo.
Ao analisar a aldeia Winnebago, Lévi-Strauss descobre a existência de duas representações distintas da aldeia, feitas por pessoas da metade de cima e da metade de baixo. Enquanto os habitantes de cima se pensam sob um plano diametral, os habitantes da parte de baixo se pensam sob um plano concêntrico. Uma estrutura diametral seria aquela em que predomina uma morfologia simétrica e recíproca entre duas metades. Já uma estrutura concêntrica apresenta uma morfologia assimétrica de partes desiguais. Nesse sentido, o autor defende que a estrutura morfológica dos Winnebago é mais complexa do que a mera escolha entre um modelo ou outro. Para ele, a estrutura morfológica deve ser pensada incorporando essas duas formas, as quais corresponderiam a uma mesma realidade complexa. Essas duas formas de descrição não precisam correspondem a duas disposições diferentes, mas pode significar uma organização que não se restringe à formalização de um só modelo.
Lévi-Strauss propõe que “o próprio dualismo seja duplo”, isto é, concebido como resultante tanto de um dualismo simétrico e equilibrado (estrutura diamentral), como de um dualismo assimétrico e desigual (estrutura concêntrica). O dualismo diametral como propiciador de atributos morais e metafísicos binários e o dualismo concêntrico como reflexo das posições desiguais de prestigio social e religioso. Além dessa constatação, o autor levanta a hipótese de que estruturas dualistas em certas tribos parecem coexistir com estruturas ternárias.
No caso dos Bororo, o autor aponta que sua estrutura social comportaria um dualismo concêntrico e outros de tipo diametral. Os Boboro, tal como os Winnebago, também conceberiam simultaneamente sua estrutura morfológica em perspectiva concêntrica e diamentral. Além disso, o autor diz que, apesar da aparente estrutura dualista dos Bororo, existe um sistema triádico de organização social (a aparente exogamia dualista se converte num sistema de endogamia triádica) essa endogamia triádica só pode ser percebida quando se inclui na analise da estrutura morfológica um aspecto tido como exceção do sistema de relações dos Bororo.
Assim, percebendo a conexão das três formas de representação morfológica (dualismo diamentral, dualismo concêntrico e tríade), Lévi-Strauss começa a sistematizar como estas se relacionam, até chegar à conclusão de que o sistema triádico é intrínseco ao sistema dualista. Fazendo um estudo sistemático e estrutural das três aldeias indígenas, o autor afirma que o dualismo e o triadismo são inseparáveis, e que, na verdade, o dualismo seria o limite do triadismo, tal como a troca restrita seria um caso particular da troca irrestrita. Dessa forma, a coexistência de duas formas de dualismo é possível, pois o dualismo concêntrico seria responsável pela mediação entre o dualismo diametral e o triadismo, permitindo a passagem de um ao outro.
Assim, Lévi-Strauss estabelece a principal característica distintiva entre os dois tipos de dualismo: o dualismo diamentral é estático, não pode ultrapassar a si mesmo e suas transformações só podem recriar um dualismo semelhante, ou seja, o dualismo diamentral é um sistema que se basta em si mesmo, numa relação simétrica entre duas metades; o dualismo concêntrico é dinâmico, pois traz em si um triadismo implícito, acarretado pelo esforço de passar de tríade assimétrica para a díade simétrica. O dualismo concêntrico é um sistema que não se basta em si mesmo, devendo sempre se referir ao meio que circunda.
Dessa forma, através de uma lógica matemática e estrutural, Lévi-Strauss demonstra que atrás de um aparente dualismo simétrico da estrutura social, surgi uma organização tripartida e assimétrica mais fundamental. Conseqüentemente, ao tratar como sistemas ternários essas organizações antes tidas como binárias, suas exceções e aspectos não contemplados pela teoria dualista deixam de ser anomalias para serem peças-chave na compreensão real da organização social.